Com duas das quatro figuras sociais da Vila de
Abrantes dou por fim a publicação de alguns textos que mostram a fotografia
escrita de Abrantes do Século XIX, início Século XX. Ao autor do livro
"LANÇANDO AO VENTO... no Concelho de Abrantes", período 1885/1905,
Coronel Joaquim Maria Valente, como abrantino, presto homenagem:
QUATRO
FIGURAS SOCIAIS
Em todas
as localidades houve sempre indivíduos,
que pelo seu modo especial de ser e por actos mais ou menos excêntricos sob
algum ponto de vista, se tornaram alvo da curiosidade das outras pessoas, e
cuja lembrança perdura na memória de quem os conheceu, lembrança que pouco a
pouco se irá esbatendo à medida que os contemporâneos e alguns imediatos
sucessores foram desaparecendo.
Abrantes,
durante o período a que se referem estes apontamentos, não
se subtraiu a tal imposição do destino, e assim na nossa memória perduram
quatro indivíduos cujas figuras sociais, como históricas que são, procuramos
esboçar focando as características principais, que os tornaram alvo da
curiosidade dos contemporâneos.
Eram os
senhores:
Barão de
Bertelinho
Padre António
José
Péres
Comendador Pataròxa
O SENHOR
BARÃO DE BERTELINHO
A notável Vila de Abrantes não fugiu à regra de,
como a maior parte das terras pequenas, ter pessoas que pelo seu
invulgar modo de ser se tornavam um tanto notáveis, dando
origem, às vezes, a episódios um tanto picarescos ou pelo menos originais.
Sob tal
ponto de vista lembramo-nos das quatro pessoas
anteriormente mencionadas.
O senhor
Barão de Bertelinho, com jazigo individual no
cemitério, fora juiz na comarca, e, na época em que o conhecemos, estava já aposentado. Vivia na sua moradia, casa
grande existente perto do portão dos Quinchosos e que têm fachadas dando para a
Rua Grande e para a Rua de S. Pedro.
Era
servido por um criado de nome José, o
José do Barão, e respectiva mulher.
Era pessoa quase octogenária, de baixa estatura e lembramo-nos de o ver, às tardes
amenas, sair a passeio pelo referido portão, barretinho
na cabeça, cachecol no pescoço, embrulhado em xale e manta, a cavalo sem esporas
em mulinha com estribos de sola e guiada e segura à mão pelo Criado, o José do Barão.
O passeio era em regra curto ë
não ia além de Barreiras do Tejo, pela calçada que liga aquela localidade com a Rua da Barca.
Ora o Senhor
Barão era frequentador da farmácia Neto e
palrador nas conversas baratas que naquele tempo se estabeleciam nas farmácias, para acompanhar o bater das pedras dos jogos de gamão e de damas, cujo taboleiro
parecia fazer parte oficial do respectivo regimento.
Para molhar a língua seca pela conversa ele
aproveitava o movimento do farmacêutico para, quando este dava costas, abrir a
vitrine próxima e tirar da prateleira o frasco do Xarope Simples e tomar
rapidamente uma boa golada do xarope, cujo
nível ia diminuindo notavelmente no
frasco.
Depois de se certificar do que o Senhor Barão fazia, o farmacêutico preparou-lhe uma partida pondo no frasco não
xarope simples mas sim xarope de ipecacuanha, vomitório eficaz, que quando chegou ao estômago do Senhor Barão
produziu os respectivos efeitos, que o obrigaram a correr rapidamente para
casa, sem deixar de dirigir palavras feias ao farmacêutico e aos outros
frequentadores da farmácia, os quais, sabedores da partida, riam ruidosamente.
A partida
foi considerada de tal ordem pelo Senhor Barão
que ele nunca mais voltou à farmácia.
Mas ô Senhor Barão era naturalmente como um nosso professor da antiga Escola do Exército, que dizia
aos alunos: Eu não sou vingativo mas
quem mas fizer paga-as.
O Senhor
Barão não era pois vingativo mas passado algum
tempo exigiu o pagamento da letra que ficará aceite.
Meteu-se
na cama, chamou o criado e disse-lhe: José, vai à farmácia (Neto e diz ao farmacêutico e ao
Sr. António da Luz que eu estou a morrer, e que desejo despedir--me dos meus bons amigos.
O criado chorando desempenhou-se maravilhosamente da incumbência, e assim os dois amigos, muito consternados, lá foram ver o senhor Barão, que, deitado
na cama, imóvel e com respiração estertorosa e com o olhar fixo no tecto
da casa, nada dizia, parecendo estar a transpor os umbrais da eternidade.
Os dois amigos disseram então
ao criado, que soluçando dizia que o senhor Barão já não via nem ouvia: veja
lá José, o que faz, ponha as suas coisas de lado, separe bem o seu dinheiro e
tudo o que é seu, porque amanhã ou depois, morto o senhor Barão, aparecerão
aqui as pessoas da família e tudo o que
está nesta casa será delas.
Depois lançaram um olhar de comiseração para o leito do Sr. Barão que, com o olhar fixo no tecto do quarto, já
dificilmente respirava, e de pé ante pé sairam do quarto.
Quando
porém transpunham a porta volveram para trás os
olhos e viram o moribundo sentado na cama e ouviram-lhe a voz sonora e
bem clara dizendo: ó José os meus
inolvidáveis amigos ainda aí estão?
Então é que eles compreenderam a partida do Senhor Barão,
naturalmente para ser contraposta à partida do xarope da ipecacuanha em vez do inofensivo xarope simples. Sairam
por isso protestando ruidosamente, batendo
com os pés e com a porta, e a amizade com o senhor Barão desapareceu de vez.
A conclusão a que se chega é que o senhor Barão tomando furtivamente saborosas goladas de xarope
simples e depois fingindo-se
moribundo para se divertir à custa da ingenuidade
dos seus adversários do jogo de gamão, atraindo-os a sua casa por
intermédio do criado que chorava copiosamente, era um ratão, isto é, um folgazão
de gosto singular, pois naturalmente ficava muito satisfeito com as
partidas engraçadas que fazia.
Como é sabido não são iguais os gostos de todos os
ratões. Variam eles como as mentalidades, as idades e os objectivos que pretendem atingir com as ratices
que põem em acção.
E na nossa memória ainda visionamos o Senhor Barão saindo a passeio, montado numa mulinha, com os pés
enfiados em estribos de sola, sem esporas, de barretinho na cabeça, de
cachecol, e embrulhado no seu chalé e manta e com o José do Barão, bem
conhecido em toda a Vila, segurando a mula pelas rédeas.
E isto que se passou nos fins do século passado parece--nos ter passado há semanas!
E assim dizem vai passando o tempo. Nós
porém dizemos: o senhor Barão já passou e não o tempo, e nós também havemos de
passar de todo, pois desde que nascemos estamos passando.
Talvez seja por isso mesmo que na escola primária são ensinadas às crianças a conjugar o verbo no
pretérito, no presente e por fim no futuro... Eu passei, nós passamos e eles
passarão...
Abrantes - Jazigo Barão Bertelinho
O SENHOR JOSÉ PÉRES
O senhor
José Péres era um homem já um tanto avançado na
idade, simpático, um tanto baixo, atarracado e dava nas vistas por usar colete
e jaqueta cujos botões eram libras, libras
ouro, autênticas, de cavalinho, e abundante corrente de libras ligada ao
seu relógio também de ouro.
Tendo
aparecido na arcada do Terreiro do Paço
com tal indumentária foi visto pelo ainda não ultrapassado grande caricaturista
que foi Rafael Bordalo Pinheiro, que o caricaturou com o título de «Bezerrinho
de Ouro».
Tinha a sua casa na Barroca da Praça,
onde existiam acomodações para uma charrete e respectiva mula.
Vivia dos
seus rendimentos e da sua casa saia ele para a sua vida na charrete conduzida
por um criado.
De uma vez, tendo de ir ao Rossio ao Sul do Tejo, chegou à entrada da ponte, onde tinha de pagar a respectiva portagem.
A tabela
da ponte era a seguinte, na parte que interessa:
Peão…………………………………………………………………………
5 réis
Cavalo,
macho ou mula …………………………………………………...10 réis
Carro de
duas rodas puchado por cavalo ou mula…………………………20 réis
O
cobrador pedia-lha 20 réis, mais 5 réis por ele e outros 5 réis pelo criado ao todo 30 réis ou
seja hoje $03.
Protestos
do senhor José Péres, porque, dizia ele, nem ele nem o
criado eram peões a passar a ponte, visto irem sentados dentro da charrete, e
fazendo as suas contas disse que não pagaria mais de 10 réis, equivalente hoje
a $01.
Protestos
agora do cobrador que dizia ter de cumprir a
tabela.
Ora muito
bem, disse então o senhor José Péres, o senhor cobrador vai fazer cumprir à risca a
tabela, porque eu também não quero o
prejuízo de ninguém.
Manuel, disse para o criado, apêa-te, desatrela a mula, mete-te entre os varais e puxa a charrete. Eu irei dentro dela com as rédeas da mula na mão, pois a mula irá
atrás da charrete.
E agora, senhor cobrador, o que indica a tabela? Charrete puxada por
homem entre varais não está prevista na tabela
e portanto nada paga. Eu não sou peão, porque vou sentadinho dentro da charrete
e assim nada pago. Pagará a mula que vai
pelo seu pé 10 réis. Aqui tem senhor cobrador 10 réis e dê as minhas
respeitosas saudações ao senhor Visconde
de Tramagal. (O senhor Visconde era o arrendatário da ponte).
E assim passou a ponte por 10 réis, ao som das gargalhadas do cobrador o folgasão do
senhor José Péres, com a sua charrete, o criado e a
mula.
O grande divertimento do senhor José Péres era porém o Judas estourando na Praça do
Concelho, em sábado de Aleluia.
O Judas era um boneco figurando, em tamanho natural,
um homem completamente vestido de calça e casaco, com chapéu de coco na cabeça, e ligado a um
poste cravado na praça.
O boneco tinha os bolsos recheados de bombas de 10 réis e dentro do chapéu uma bomba de maior potência, de pataco.
Logo que na Igreja de S. João tocavam os sinos anunciando a Aleluia, o fabricante do
boneco, com a assistência do Senhor José Péres e de
abundante rapazio, que muito gostava de ouvir o estourar das bombas e sentir o
cheiro da pólvora queimada, e com as janelas da Praça cheias de Senhoras e de meninas, lançava fogo ao
rastilho, a que se seguiam os estouros sucessivos das bombas, que enchiam os bolsos do boneco, até que a mais potente
esfarrapava o chapéu de coco, fazia desaparecer a cabeça e acabava o
lançamento de fogo, ao fato que ficava completamente consumido, restando por
fim apenas o poste de madeira.
Era nisto que consistia o chamado «Judas»
do senhor José Péres, que muito se divertia
entre as palmas do rapazio e as
gargalhadas das pessoas graúdas.
Vê-se assim que o senhor José Péres era um ratão de gosto
engraçado, inofensivo e que muito se divertia com as suas ratices.
(PÁGINAS 73/74/75/76/77/78/79 - do livro "Lançando ao
Vento... no Concelho de Abrantes - Caderno do Coronel Valente". O texto é
uma cópia do referido livro.
Abrantes - Jazigo José Péres
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