AOS HERÓIS DA GRANDE GUERRA
11 DE NOVEMBRO DE 1918
Por José Manuel d'Oliveira Vieira
Após
o final da I Grande Guerra (11h00 do 11º dia do 11º mês de 1918), alguns anos
antes da construção do Monumento aos Mortos da Grande Guerra que se encontra na
Praça da República em Abrantes (4 de Junho 1940), já a população,
ex-combatentes, gaseados, estropiados, viúvas, órfãos e militares da praça de
Abrantes se reuniam neste local, virados no sentido do Mosteiro da Batalha,
para celebrar o Dia do Armistício.
Por mais testemunhos
e pesquisas que haja sobre guerras, nunca a história será completa. Horrores,
cobardias, actos relevantes e outros ficarão para sempre no anonimato.
No dia 7 de Setembro de 1928, em
Alferrarede, Emílio Salgueiro, preparou uma pequena brochura dedicada “AOS
HEROES DA GRANDE GUERRA” (a). Neste pequeno livro de bolso, Emílio
Salgueiro relata a carta que um militar do C.E.P. (Corpo Expedicionário
Português), teria escrito nas trincheiras a sua esposa Mariasinha e já prisioneira dos alemães, gravemente ferido, teria completado a mesma.
Essa
carta chegou a Mariasinha pela mão de Noéme, Irmã de Caridade, uma retaguarda
de guerra por vezes ignorada, mas conforto de quem dela mais necessita:
Minha querida Mariasinha:
São duas horas da
madrugada ao começar esta carta. De dia não te pude escrever, pois andei em roda
viva a fazer os últimos preparativos para a retirada de amanhã, por ter
acabado o nosso tempo de trincheira.
Quasi um ano sempre aqui metido!... Parece-me que desta vez é que vamos
regressar a Portugal, pelo menos é o que diz toda a gente. Que saudades,
querida Mariasinha!... Desde que te deixei, nunca um só dia se passou que a
tua imagem doce, perfumada e simples como as violetas do nosso jardim, não
fosse a companheira persistente dos meus sonhos, quer estivesse de sentinela
alerta na Terra de Ninguém, quer fosse dormindo nos buracos da trincheira.
Nunca me abandonaste, querido Amor!... Foste para mim o eflúvio maravilhoso que
dava calor e vida ao meu corpo remolhado pelas cacimbas da manhã, que me
insuflava coragem para acometer o inimigo, que me embalava na terra lamacenta
que servia de tarimba, docemente, docemente, como se eu fora uma creança
pequenina.
Cada carta tua,
distribuída quasi sempre ao cair da tarde, quando as almas mais se deprimem
contemplando o Sol que se esconde, era para mim uma alegria sem par, uma
Aleluia Divina, que me fazia esquecer todos os sofrimentos da véspera. Se tu pudesses
saber, querida Amiga, como sofre na Guerra um coração que ama...!? E' a duvida
que nos rala; é a ausência que nos tortura. Sabes lá!... Olha que já perdi o
conto das orações que meus lábios descrentes teem balbuciado, a agradecer a
Deus o ter ele permitido que a minha Mascotte se não esquecesse do seu André...
Mas, emfim,
deixemo-nos de tristezas. Dizem-me que sempre é certo terminar agora o nosso
martírio de serviço. Talvez assim seja. Não ha mal que sempre dure...
Entretanto, embora
verdade, nunca acreditei que conseguisse voltar vivo á nossa casinha tão
amada. Has-de lembrar-te de muita vez eu dizer o meu pressentimento, de que os
beijos que te dava seriam os últimos da minha boca. E que dias antes da
partida, passávamos horas seguidas, um ao pé do outro, fitando-nos mutuamente,
sem palavra dizer, corações alanceados de tristeza, de pena e de dor. Eram os
meus olhos negros que te confessavam esse negro presságio da morte; e parece-me
que tu bem os compreendias, pois de repente uma onda de ternura te tomava o
corpo, e vinhas abraçar-me com febre, orvalhando o meu rosto com as tuas
lagrimas de mulher que ama e muito sofre. Mas o Destino havia ordenado que eu
vivesse. De facto, julgo que ambos nos enganámos. A partida está marcada para
amanhã, 9 de Abril, e penso que até lá não haverá nenhum contratempo. A noite
está socegada, e tão quieta, que me faz lembrar os serões que passávamos ao
luar, contando as estrelas e ouvindo as desfolhadas que ecoavam ao longe, no vale de Abrançalha!... Nem parece
mesmo que a 100 metros
de distância, existem alguns milhares de homens emboscados, prontos a matarem o
próximo na primeira oportunidade.
Sinto a impressão de
que todos estamos cançados desta guerra infernal. Oxalá que ela amanhã
terminasse num grande abraço de irmãos, entre amigos e inimigos, e que as
pombas da Paz viessem de vez, e para todo o sempre, pousar nos campos de
batalha.
Meu amor: vou agora
dormir um pouco para... sonhar mais uma vez contigo. Ma petite hirondelle, não
te esqueças de vir, como nas outras noites, matar-me as saudades desse lindo
Portugal e contar-me as novidades do nosso ninho amado. Sim?
Vou interromper agora
a carta, para a recomeçar amanhã e te confirmar que consegui chegar á Base são
e salvo, pela Graça Divina do Senhor.
E olha que a
interrupção é na altura precisa, pois acabo de receber um telefonema do
Batalhão, perguntando que novidades ha. Parece que rebentaram meia dúzia de
granadas de 15, no sector da esquerda. Sempre ha gente muito assustadiça... E'
pelo menos uma noite transtornada. Entretanto, a verdade é que o bombardeamento
parece intensificar-se. São talvez os alemães que nos querem apresentar as
suas despedidas... Isto, afinal, parece sério, pois ouço tocar a sineta de
gaz-alarme. Bem, até logo. Resa por mim. Oxalá que a minha alegria de ha pouco
não tivesse sido extemporânea...
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Vou acabar a carta,
como te prometi.
Estou prisioneiro e
ferido gravemente, no Hospital de Lille. Julgo que me querem cortar as pernas,
esfaceladas por um morteiro. Com certeza morrerei na operação, pois a terrível
gangrena é já insuperável. Nem sei como posso escrever, deitado, sofrendo dores
horriveis...
E' a tua imagem
querida que me segura a cabeça e dá firmeza á minha mão para poder garatujar
estas palavras. Sempre te amei muito; mas é neste momento supremo, ás portas da
Eternidade, que bem avalio a força da nossa amizade, que nossos corações
prendeu e uniu para toda a vida. E' ela que me ajuda a bem morrer; que me
dulcifica os sofrimentos; que me faz sorrir, ao mesmo tempo que os olhos vertem
lagrimas de dor...
Cuida sempre da nossa
casinha, meu Amor. E nunca esqueças de todos os dias regar a roseira branca que
envolve a janela do nosso quarto, donde eu costumava tirar as flores com que de
manhã, ao nascer do Sol, engrinaldava os teus cabelos negros... Adeus, Mariasinha...
Pede a Deus que no Céu proteja a minha alma pecadora; e que na Terra dê
Felicidade a ti e á pobre Irmã de Caridade que me serve de enfermeira, tão boa
e caridosa, que tenho a sua promessa de fazer com que esta carta chegue ás tuas
mãos.
Adeus... A cama vai a rodar para a sala das operações...
André
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Madame:
Votre mari est deja parti pour le Ciei. Il avait, pour
vous, madame, un grand amour, aussi grand, aussi grand, comme la passion que
j'ai senti pour mon Dieu !...
Dans les priéres de mon coeur, je n'oublierai pas le
capitaine André, gentilhomme sans peur et sans reproche, mort en défense de ma
Patrie.
Que le Bon Dieu puisse lui donner dans le Ciel, le
Bonheur qu'il a merité par sa vie de sacrifice. Souffrez avec
résignation, Madame. Je comprend bien votre douleur. Je suis aussi une veuve de
la guerre...
Noéme - Soeur de Charité.
Croix Rouge,
Pavillon n. 3 - Lille.
TRADUÇÃO
Madame:
O vosso marido já partiu para o céu.
Ele tinha, por vós, madame, um grande amor, tão grande, tão grande, como a
paixão que sinto pelo meu Deus!...
Do fundo do meu coração, eu não
esquecerei o capitão André, gentil-homem sem medo nem censura, que morreu ao
defender a minha Pátria.
Que o bom Deus possa dar-lhe no Céu,
a Alegria que ele merece pela sua vida de sacrifício.
Sofre de resignação, madame. Eu
compreendo bem a sua dor. Eu também sou uma viúva da guerra…
Noéme – Irmã da Caridade
Cruz
Vermelha, Pavilhão n. 3 – Lille
(a)Por Emílio
Salgueiro – Edição da Sub-Agência da Liga dos Combatentes da Grande Guerra em
Abrantes – 1928 Minerva Ldª Abrantes.
Fotos: I Guerra Mundial –
Colecção Garcel
Requinta: Museu Oferendas
Soldado Desconhecido – Mosteiro da Batalha
Tradução da carta: Marta
Heitor
Brochura de Emílio Salgueiro
Portugal (Montalvo) - Preparação para entrar na I GG
França - Portugal na linha da frente
(Por contar fica a história das enfermeiras ao serviço de Portugal na I GG)
NOTA: Estas e outras fotos (mais de mil), bem como a "História da Sub-Agência da Liga do Combatentes da Grande Guerra de Abrantes", foram, no ano de 2005, entregues na Biblioteca Municipal António Boto, oferta do autor José Manuel d'Oliveira Vieira, para que a História dos Combatentes de Abrantes possa ser continuada.
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